Uma porção calamitosa de anseio e vontade

Há quem veja as linhas que separam as cores do arco-íris. Há quem ouça a eletricidade passar pelas paredes, quem diga a tonalidade do canto dos pássaros. Há quem sinta tristeza no Sol poente e quem fareje angústia numa composição em sol maior. Eu nunca tive um quê de extraordinário, nesse sentido. Sempre que pude, encarei a realidade com modéstia, nada para além do necessário. Foi uma surpresa para mim encontrar conforto em coisas irreais, há alguns anos. 

Não pensei que escreveria sobre isso até noite passada, quando tive um sonho que me fez acordar com os lençóis nas mãos. É raro eu sonhar com dias ensolarados (acho que meu subconsciente é mal iluminado), mas consigo me lembrar da luz do Sol. Era dia quando me vi no segundo andar de uma casa opulenta, em algum condomínio de luxo. Para variar, eu não sabia muito bem o que fazer. Eu só estava lá. Saí pela varanda do que parecia ser o quarto principal, desci alguns degraus em pedra e andei até o fim da rua. A rua era cheia de casas em cores frias, cheia de muros altos. Neste ponto, houve um salto. De repente, eu estava de frente para um portão que protegia uma grama bem verde entremeada por ilhas de granito. Atrás da grade, havia uma fera. Foi a primeira vez que sonhei com um Cão Infernal. 

Ele parecia plenamente confortável com o céu aberto, não era acompanhado por morcegos ou cascavéis, não tentava se esconder de mim. Na verdade, não fez nada que pudesse me ameaçar a não ser me encarar. Tinha uma feição intensa, de cenho mordaz. Os dentes eram sobressaltados, muito afiados. Eu senti medo. Não era apenas seu corpo truculento, seu pelo alto sobre a coroa, suas patas do tamanho de portas de carros... Havia muita paciência naquele mal. Tive uma reação ingrata: apanhei uma porção de lama e atirei através da grade, não sei bem o porquê. Talvez, se estivesse acordado, não faria isso, mas foi como aconteceu. A fera não pareceu gostar e eu corri. Corri a passos de lebre de volta para a casa, sempre olhando pro alto, como se todo perigo viesse de cima, bem na minha cabeça. Noutro momento, eu estava novamente na varanda enfeitiçada. Dessa vez, quando entrei no quarto, não estava mais sozinho. Uma mulher se deitara na minha cama. Foi quando o cão me alcançou e me mordeu.

Sabem, não me dediquei à geomancia como me dediquei ao xadrez ou à própria literatura. Não sei também interpretar sonhos, não vejo sinais em nuvens de meio-dia. A única coisa que sei é que, quando acordei, uma porção calamitosa de anseio e vontade se apoderou de mim. Fodam-se os espinhos. Quero tomá-la esta noite, a vida dos despreocupados. É sob pele bonita que quero fazer morada, reconhecer na magia beleza e satisfação, obter um propósito para além do material e da ignorância. 

Não me entendam mal, não uso uma capa enquanto escrevo estas palavras. Pensam que produzo fogo sobre a palma das mãos? Que leio a mente de meus inimigos, ou que me deito com demônios à noite? Por mais romântico que esse ideário torne a emergir na cabeça de alguns, sei que não é assim que as coisas funcionam.

Acredito, finalmente, ter provado da vertigem que meneia a consciência rara e inteligente. Para mim, há novamente peso em palavras gentis, a única, verdadeiramente eficaz, forma de fazer ruir o espírito dos homens. Palavras com amor, com calor. Apenas luz, não mais ruído solar.

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