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Constelação Nicolândia

Outro dia, fui de um lado para o outro em um trilho de Sonho de Valsa. Valsa nada, era Rock, e você não dançava, apenas cantava.  Cantava só para mim.  Depois, subi e desci em uma montanha russa à luz do dia (deste tamanico, mas sinuosa o suficiente para me dar alguns sustos).  O primeiro brinquedo, entretanto, foi quem quase me arrancou a cera das orelhas. No Super Frisbee, enquanto estava lá em cima, pendia as pernas no ar, pensando onde foi que me meti.  Na queda, em alta velocidade, imaginava a comicidade de perder a consciência ali, do seu lado, ou de colocar as tripas pra fora no pobre desavisado que, coitado, estivesse a um raio de cinco metros da plataforma.  É minha primeira vez em um parque de diversões, a primeira vez que confio meus medos a equipamentos de outrem.  Não obstante, é muito bom para mim olhar para o lado e ver seu sorriso de praia a me dar as boas vindas, a cada atração.  É muito bom para mim encontrar refúgio na sua mão, que s...

Prática apotropaica

Olhei para o último lugar em que você me mordeu e senti saudades.  Achei mesmo que faltava um pedaço de mim antes de conhecer você, mas não sabia por onde começar a procurar.  Isso me entristeceu. E você me apareceu. Eu fiquei triste quando me dei conta de que faltava um pedaço de mim também quando você ia embora  (odeio quando você vai embora).  No minuto seguinte, continuei a pensar.  Perguntei-me se você estaria mordendo alguém neste instante, enquanto escrevo.  Outra perna, outro ombro, outro antebraço... outro coração.  Pensando bem, ainda consigo encontrar suas marcas por toda a cidade, sobretudo onde moro.  Não gosto de virar o rosto, eu sempre admiro sua dentição em cada coluna, cada porta.  Mas as que você fez em mim...  Se eu pudesse cobri-las com tatuagens do tamanho de navios,  se eu pudesse queimá-las com a brasa de Roma e soterrá-las sob jardins de tulipas,  em pés de orquídeas,  em pés de jasmim...  Tal...

Sob os pés calejados dos pássaros

Nunca presta essa história de avançar madrugada à dentro. É sempre uma prece. Há quem regresse, mas não eu. Eu sigo embrenhado, males rogados, como numa teia viscosa, ou num bronco torcer. Decidi num minuto: chamar-me-ei Toco , e passarei o resto de meus dias sob os pés calejados dos pássaros . Outrora, quisera eu fazer as escolhas pelos nós dos dedos, guiar os cegos pela noite. Outrora, quisera eu governar a Babilônia de muitos deuses, levar à justiça cada soberano inconsequente, cada inseto indolente. Percebi, entretanto, que não afeto as escolhas dos pássaros. Não impeço o Sol de nascer, nem faço as águas dos rios rolarem morro acima. É muita cretinice essa história de avançar madrugada à dentro. Começamos a pensar que quase tudo é possível, que quase tudo é perverso (mesmo as escolhas dos pássaros). Pensamos que quase tudo é segredo, mesmo o tempo escorrido... ou melhor, decorrido. Deve ter algo a ver com esse gosto metálico na garganta, algo com essa linguagem do amor, convoluta e...

ddd

Já reguei flores ao meio-dia. Já escrevi sobre dor e sobre Deus enquanto esperava em vão por um amor que não veio. Já ignorei paixões muitíssimo promissoras (mas essas, bem ou mal, são relegadas ao ostracismo). Vez ou outra, dou ouvidos à lembrança de um amor de primavera. Acontece rápido, geralmente enquanto conto carneirinhos. A descrição que se segue nada mais é que uma tentativa de traduzir o que sinto no instante em que minha mente desatina a divagar: primeiro, um gatilho, uma armadilha cruel de todo dia que desponta, singela e abatida, a beleza das cores terra e azul no meu imaginário. Uma música, uma palavra. Às vezes, basta um miado. Depois, vêm as memórias servidas como pratos quentes e mornos, uma mesa soberba, tamanho família, para suprir toda a minha fome de atenção, fome de tentação. Doce e terno é o gosto dos morangos, como carinho sobre pelo recém escovado. O cheiro das ervas e da chuva... Quase sempre, depois de todo esse alvoroço emocional, sobram as sementes e os grac...

Perdi um bocado de vida

Outro dia, adivinhem só, passei por outro desses eventos canônicos. Dessa vez, foi o da minha morte. Disse aos biógrafos que morri aos poucos. Disse aos amigos que morri em desvantagem. Disse aos parentes que ainda estou vivo, muito bem e gozando do melhor que a distância deles pode me proporcionar. Guardei a melhor desculpa, entretanto, ao legista, para quem disse que morri em pedaços: um aqui, outro ali, um que se segura pendente por uma linha de carne, outro que pulsa e se debate, mas logo se aquieta, inerte sobre o carpete.  Refleti a respeito e diria que perdi o primeiro pedaço de vida quando me descobri vendo cacos do cotidiano pelos olhos de outras pessoas. Foi a primeira vez que vi a miséria não compadecida. Foi quando vi todo o desprezo, o quão rigorosamente elas - as pessoas - não se importam, que senti esse vazio vulgar no coração. Foi quando, pela primeira vez, neguei ajuda a quem precisava - foi também quando percebi que eu mesmo não podia mais me ajudar.  Pe...